07/07/2020 08h26 - Atualizado 02/08/2020 11h18

A incerteza

Por Terezinha
para IARGS


Artigo do Dr Marcus Vinicius Martins Antunes, associado do IARGS, Mestre em Direito pela PUC/RS e Doutor em Direito pela UFRGS. Advogado especialista em Direito Público.

Tema: A incerteza

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Pontes de Miranda, pensador e jurista maior do século XX, no Brasil, e um dos mais importantes em escala internacional, empenhou-se em explicar que o direito é processo de adaptação social, ao lado de outras normas ou técnicas. Essa preocupação já estava presente em “Systema de Sciencia Positiva do Direito” [1], publicada em 1922, no Rio de Janeiro, aos trinta anos. Com sua tendência à matematização, posteriormente, em sua vasta obra, classificou, quanto ao peso de estabilização, a Religião, com 6, a Moral, com 5, a Arte, com 4, e o Direito com 3. Isso queria dizer que, ao mesmo tempo, o Direito instabilizava mais que os sistemas anteriores. Mais instabilizantes ainda eram a Política (2) e a Economia (1). Pontes não inclui, expressamente, nesta pontuação, nem a ciência nem a tecnologia. 

Certa estabilidade é pressuposto da certeza nas relações jurídicas, que se inclui entre os fins e funções do direito. No entanto, a ênfase nesse valor depende, em certa medida, da visão mais ou menos conservadora, mais ou menos reformadora, ou revolucionária. Isto é, adquire um caráter ideológico. 

Angel Latorre, jurista e doutor na Universidade Complutense de Madrid, integrante do Tribunal Constitucional espanhol, após a redemocratização, publicou pequena obra[2], tornada porém clássica. Nela, debate a coexistência dos fins do direito, referindo a função pacificadora, a segurança nas relações jurídicas, aí incluída a certeza do direito, bem como a justiça. Demostra que muitas vezes esses fins – ou princípios, ou valores, dependendo da abordagem – podem estar em colisão, necessitando de compromisso. Ou ponderação, acrescento, para refletir um debate que esteve de moda. Essa segurança e certeza do direito repousam na necessidade humana de previsibilidade e de garantia dos direitos individuais (e outros, podemos dizer) . E podem ambas, sob certas circunstâncias, entrar em colisão com a Justiça, que muitas vezes impõe a necessidade da reforma, e até da ruptura. 

O direito é “invenção” importante, fruto da reflexão humana. Somos levados a crer que invenções como o direito, a arte, a religião são onipotentes. Mas não. Eis que surge há poucos meses um ser, não se sabe se vivo ou morto, microscópico, invisível, que se vale de uma proteína para penetrar no corpo, capaz de infectá-lo e causar a morte. O COVID 19, que se manifestou primeiro na China, chegou ao Brasil em março deste ano, provocando, de súbito, alterações de comportamento individual e coletivo, semelhantes – às vezes mais fortes – às necessidades de guerra entre países poderosos. Tal como em 1918, a gripe espanhola que inclusive levou Rodrigues Alves, pela segunda vez eleito Presidente da República, desta vez sem tomar posse. 

Em plena época de quase adoração da tecnologia, que subverte constantemente os comportamentos, ela, que permite a comunicação ao ponto da saturação, não é ainda suficiente para prevenir, nem de agir rapidamente para debelar esse mal, conhecido como vírus, que se comunica com a mesma rapidez. Ou muito mais. E a certeza do cotidiano, de súbito, se converte em incerteza e instabilidade. Os brasileiros, apesar de acompanharem o que se passava no exterior, foram tomados de surpresa, e, muitas vezes, de incredulidade. 

O Brasil vem percorrendo essa via crucis, segundo país do mundo em números absolutos, com mais de sessenta mil óbitos. E sem horizonte visível. 

Quantos problemas decorrem dessa pandemia, no âmbito do direito? 

Desde a garantia da vida, e da proteção da saúde até a garantia de direitos mais simples e aos mais complexos. Direitos constitucionais, como à saúde, ao trabalho, à livre iniciativa, de ir e vir, são postos sob restrição, em graus variados. 

Nessa esfera do direito público, foram atingidos, talvez por primeira vez, os direitos políticos previstos na Constituição. As eleições municipais de primeiro turno, previstas para outubro, vêm de ser adiadas, por mais de trinta dias, de outubro para novembro, por Emenda que prevê possibilidade de um segundo adiamento. 

A questão da competência administrativa e legislativa para atuar sobre a pandemia também se pôs no Supremo Tribunal Federal, interpretando a concorrência entre estados federados e seus municípios. 

No campo do direito privado das obrigações, a suspensão ou interrupção dos contratos de trabalho, ou das prestações contratuais civis, provoca o debate sobre a ocorrência do factum principis, por exemplo, para invocar responsabilidade de ressarcimento. 

No campo processual, o direito à razoável duração do processo, atingido, já provoca justas demandas de parte da Ordem dos Advogados, no sentido de que se encontrem soluções para abrandar ou contornar a demora ou a paralização, e o próprio acesso à Justiça. 

Ou, então, podemos cair – esperamos que não – em dilemas, aporias éticas e filosóficas, como as que se puseram em hospitais europeus: diante de impossibilidade de atender a todos os pacientes, a necessidade de escolha, pelos médicos, daqueles que receberiam atendimento – prioritariamente os mais jovens, sacrificando idosos. Tais casos são a materialização de hipóteses acadêmico/literárias, como O Caso dos Exploradores da Caverna, apresentado frequentemente em salas de aula. Ou da conhecida tábua de salvação, em alto mar, como excludente de ilicitude. Ou mesmo do caso da Tragédia dos Andes, com a equipe uruguaia. São os casos limite que se oferecem à prática e à reflexão jurídicas. 

Em concreto, vê-se um conjunto de medidas jurídicas, especialmente decretos atinentes ao controle e prevenção da saúde pública, que, de certa forma, instabilizam a vida até então tida como “normal”. Por exemplo, as cores das “bandeiras” em nosso estado, vedando ou restringindo atividades, que mudam com certa frequência, de acordo com a evolução da pandemia e a avaliação que dela se faz. 

Aqui, a estabilidade e a segurança jurídicas são atingidas, instabilizadas – não sem razão, se diga – por força do direito posto e decretado, porque os fins do direito estão aparentemente em colisão. Nestes casos, nem sempre a conciliação ou o compromisso são possíveis. Resta a ponderação, prevalência ou outro cânon que a substitua, em razão das críticas que aquela vem sofrendo nos últimos anos. De qualquer forma, tanto o juiz como o legislador são obrigados, em certas circunstâncias, a fazer escolhas, que implicam, provisoriamente, proteção de um valor em detrimento de outro, ou sua redução. 

A segurança e a certeza não são valores absolutos. E nenhum outro do direito. 

Como escreveu Luis Recaséns Siches, guatemalteco, professor de Direito em várias Universidades da Espanha,[3]: “La seguridad es el motivo radical o la razón de ser del Derecho; pero no es su fin supremo. Este consiste em la realización de valores de rango superior.”.

 

[1] Vol. I. Introdução à sciencia do direito: Jacintho Ribeiro dos Santos, 1922.

[2] Introdução ao Direito. Livraria Almendina: Coimbra, 1978.

[3] Tratado general de filosofia del derecho. Tercera edición. – Porrua: México, 1965.

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