IA no Judiciário: Entre a Eficiência Tecnológica e a Essência Humana da Justiça
para IARGS
Introdução
O avanço da Inteligência Artificial (IA), materializado em modelos avançados de linguagem natural como ChatGPT, Claude e outras ferramentas emergentes, tem provocado transformações profundas em diversos setores da sociedade. No universo jurídico, particularmente no âmbito judicial, essa revolução tecnológica suscita debates fundamentais sobre os limites éticos e práticos dessas tecnologias. A questão central que se impõe é: pode uma máquina substituir ou competir com o raciocínio jurídico humano na delicada tarefa de decidir conflitos e aplicar a justiça?
A Justiça transcende um mero sistema normativo, constituindo-se em uma prática cotidiana de interpretação, ponderação e julgamento. Diante dessa evolução tecnológica, emerge a necessidade de reflexão crítica sobre o uso crescente da IA no Judiciário e os limites dessa ferramenta frente à complexidade humana inerente ao ato de julgar.
A Natureza Ética da Atividade Judicial
A atividade judicial representa, em sua essência, um exercício ético. O magistrado, ao decidir, não se limita à aplicação mecânica de normas, mas pondera valores e avalia as circunstâncias singulares de cada caso concreto. Essa dimensão axiológica da jurisdição encontra fundamento no próprio texto constitucional, que estabelece princípios como dignidade da pessoa humana, individualização da pena e proporcionalidade.
Embora a IA demonstre extraordinária capacidade para processar grandes volumes de dados, localizar precedentes jurisprudenciais, sugerir linhas argumentativas e estruturar minutas de decisões padronizadas, ela carece da sensibilidade ética e emocional inerente à atividade judicante. A capacidade de compreender nuances comportamentais, perceber intenções não explicitadas ou julgar sob contextos que extrapolam a lógica algorítmica permanece exclusivamente humana.
Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por meio da Resolução nº 615/2025, estabeleceu diretrizes para o uso de Inteligência Artificial no Poder Judiciário, reconhecendo tanto o potencial da tecnologia quanto a necessidade de preservar a supremacia da decisão humana nos julgamentos.
O Desafio da Fundamentação das Decisões Judiciais
Um dos aspectos mais críticos da aplicação de IA no contexto judicial refere-se à necessidade de fundamentação adequada das decisões. Em um sistema jurídico fundado no princípio da motivação racional das decisões, consagrado no artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, torna-se inadmissível que o julgador apresente decisões desprovidas de transparência argumentativa.
Cada decisão judicial deve ser minuciosamente explicada, sustentada por argumentos coerentes, lógicos e fundamentados no ordenamento jurídico vigente. Contudo, modelos avançados de IA operam mediante cálculos probabilísticos complexos, frequentemente opacos e inacessíveis ao raciocínio jurídico convencional. Essa opacidade algorítmica pode introduzir um risco epistêmico inédito ao processo judicial: a perda da cadeia de raciocínio que legitima a decisão.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça já reconhece que a fundamentação deficiente constitui vício capaz de anular decisões judiciais. Nesse contexto, o uso de IA sem adequada compreensão de seu funcionamento pode comprometer a própria validade jurídica das decisões proferidas.
Riscos Epistêmicos: As Ilusões de Entendimento
As chamadas “ilusões de entendimento” representam um fenômeno particularmente preocupante no ambiente jurídico. Tais ilusões ocorrem quando as respostas geradas pela IA parecem suficientemente coerentes, fundamentadas e convincentes, embora sejam essencialmente incorretas ou superficiais.
Um exemplo ilustrativo pode ser observado na cobertura jornalística de temas jurídicos: profissionais do Direito identificam rapidamente imprecisões conceituais e técnicas que passam despercebidas ao público leigo. Analogamente, quando consumimos informações sobre áreas especializadas como medicina ou engenharia, tendemos a confiar plenamente no conteúdo apresentado, precisamente por carecer do conhecimento técnico necessário para identificar equívocos.
No contexto judicial, um magistrado ou advogado que utilize IA sem compreender adequadamente seu funcionamento pode inadvertidamente confiar em uma resposta aparentemente sólida, mas epistemologicamente frágil. A consequência é um empobrecimento da racionalidade jurídica, com risco concreto para a integridade do sistema de justiça.
Casos recentes no cenário internacional, como decisões judiciais baseadas em precedentes fictícios gerados por IA, demonstram a materialidade desse risco e a necessidade de vigilância constante por parte dos operadores do Direito.
A Natureza Derrotável do Raciocínio Jurídico
Outro aspecto fundamental diz respeito à natureza intrinsecamente derrotável do raciocínio jurídico. Diferentemente das respostas categóricas frequentemente oferecidas por algoritmos, os argumentos jurídicos são, por essência, flexíveis e abertos à contraposição e revisão constante diante de novas informações ou elementos probatórios.
O conceito de “derrotabilidade” (defeasibility) no Direito refere-se à possibilidade de que conclusões prima facie válidas sejam superadas ou modificadas pela introdução de novos elementos fáticos ou jurídicos. Essa característica é fundamental para a adaptabilidade do sistema jurídico às complexidades da realidade social.
Exemplos históricos ilustram essa dinâmica: o instituto da prisão civil por dívidas, outrora admitido pelo ordenamento brasileiro, foi progressivamente limitado até praticamente desaparecer com a promulgação da Constituição de 1988 e o Pacto de San José da Costa Rica. Similarmente, as limitações aos direitos das mulheres casadas, como a necessidade de autorização marital para trabalhar, foram superadas pela evolução do entendimento jurídico sobre igualdade e dignidade. Esses exemplos demonstram como o Direito evolui, reavaliando e reformulando suas conclusões diante de novos paradigmas sociais e constitucionais.
A capacidade humana de reconsiderar posições, ajustar decisões à luz de novos elementos e exercer o juízo crítico permanece essencial no processo judicial. A IA, embora capaz de incorporar vastos repositórios de dados e precedentes, não apresenta, autonomamente, capacidade de autorreflexão ou adaptação genuína diante do inesperado.
O Papel Indispensável da Advocacia
Nesse cenário tecnológico em transformação, destaca-se ainda mais a relevância constitucional da advocacia. O artigo 133 da Constituição Federal estabelece que “o advogado é indispensável à administração da justiça”, preceito que ganha nova dimensão frente ao uso crescente de IA no Judiciário.
Em todas as etapas processuais – da petição inicial às razões finais, perpassando interrogatórios, produção probatória e audiências – o advogado exerce papel fundamental na garantia do contraditório, da ampla defesa e do equilíbrio argumentativo necessários à formação do convencimento judicial. A advocacia atua, portanto, como guardiã da racionalidade, transparência e humanidade nas decisões judiciais.
Mais que isso, o advogado representa um filtro crítico fundamental na utilização de ferramentas de IA, sendo responsável por validar informações, questionar conclusões automatizadas e assegurar que a dimensão humana dos conflitos não seja negligenciada. A Ordem dos Advogados do Brasil, reconhecendo essa responsabilidade, aprovou em novembro de 2024 uma Recomendação estabelecendo diretrizes éticas para o uso da Inteligência Artificial na advocacia, como a exigência de supervisão humana em todas as atividades, a obrigatoriedade de consentimento formal do cliente antes do uso da IA, e a recomendação de capacitação contínua dos advogados para garantir o uso responsável dessas tecnologias.
Perspectivas para um Uso Ético da IA no Judiciário
O futuro da justiça certamente incorporará um uso mais intensivo e sofisticado das tecnologias digitais. A IA pode e deve ser uma aliada valiosa na busca por maior eficiência, padronização de procedimentos e democratização do acesso à justiça. Contudo, seu emprego deve observar rigorosos critérios éticos e técnicos.
Algumas diretrizes fundamentais emergem dessa reflexão:
Transparência algorítmica: Os sistemas de IA utilizados no Judiciário devem ser auditáveis e compreensíveis, permitindo a identificação de seus critérios decisórios.
Supervisão humana qualificada: Toda aplicação de IA deve estar sujeita à revisão e validação por profissionais tecnicamente habilitados.
Preservação da responsabilidade decisória e accountability: A decisão final deve sempre emanar de um julgador humano, que assume integral responsabilidade pelos seus atos jurisdicionais. O conceito de accountability – responsabilização efetiva – exige que seja sempre possível identificar e responsabilizar o agente humano pela decisão tomada, mantendo-se a cadeia de responsabilidade moral e jurídica inerente ao exercício jurisdicional.
Formação continuada: Magistrados e advogados necessitam de capacitação adequada para compreender as possibilidades e limitações das ferramentas de IA.
Considerações Finais
As decisões judiciais produzem efeitos profundos e imediatos sobre a vida das pessoas, famílias e comunidades. Não há espaço para automatismos que negligenciem a dimensão humana, frequentemente trágica, dos conflitos submetidos à apreciação judicial.
O juiz, ao decidir, não pode delegar a responsabilidade moral, social e ética inerente ao ato jurisdicional a uma máquina, independentemente da sofisticação tecnológica disponível. A autoridade do julgador não deriva de seu acesso privilegiado a dados, mas de sua capacidade de deliberação moral consciente e fundamentada.
O desafio que se apresenta à comunidade jurídica é duplo: aproveitar o potencial transformador da IA para aprimorar a prestação jurisdicional, sem comprometer os valores fundamentais que legitimam o exercício do poder judicial. A tecnologia deve servir à justiça, e não o contrário.
Em última análise, preservar a dimensão humana, reflexiva e ética da decisão judicial constitui a única forma de assegurar que a Justiça, enquanto instituição social, continue merecendo a confiança daqueles a quem se destina servir. O futuro da justiça será necessariamente híbrido – combinando a eficiência tecnológica com a sabedoria humana -, mas sempre sob a primazia dos valores constitucionais que fundamentam nosso Estado Democrático de Direito.
Jorge Alberto Araujo
Associado do UARGS, Juiz do Trabalho