A Bioética e regulamentações legais na clínica médica reprodutiva: um olhar para os Termos de Consentimentos Livres e Esclarecidos
para IARGS
O presente ensaio, sem qualquer pretensão de exaurir o tema ou apontar soluções conclusivas, aborda o papel da Bioética como mecanismo colaborativo às regulamentações legais aplicadas às clínicas médicas reprodutivas, no que tange ao código de ética médica e a Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD, aplicáveis ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
A interseção entre ética e a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) em clínicas médicas é um tema de grande relevância, especialmente no contexto brasileiro, onde a proteção de dados sensíveis, como informações de saúde, é crucial para manter a confiança na relação médico-paciente. Tal assertiva se torna ainda mais urgente quando frente às clínicas reprodutivas, as quais lidam com materiais reprodutivos, incluindo gametas e embriões, somados a dados genéticos de pacientes, o que detêm valor de patrimônio da humanidade.
Como ponto de partida, vale referir que a Lei nº 13.709/2018 – LGPD – em vigor desde 2020, regula o tratamento de dados pessoais no Brasil, especialmente dados sensíveis como informações de saúde e torna-se um mecanismo relevante para reforçar a ética médica ao exigir que os dados dos pacientes sejam tratados com segurança e privacidade, alinhando-se ao dever de sigilo profissional, previsto no Código de Ética Médica, estabelecido pelo CFM.
A ética médica no Brasil é regida principalmente pelo Código de Ética Médica, estabelecido pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), que enfatiza o sigilo profissional e a proteção da intimidade do paciente O sigilo é um pilar da relação médico-paciente, protegido também pela Constituição Federal e reforçado pela LGPD. A lei codifica e amplia essas obrigações éticas, transformando-as em requisitos legais, o que inclui:
- Consentimento Informado: A LGPD exige que os pacientes sejam informados e concordem explicitamente com o uso de seus dados, alinhando-se ao princípio ético de autonomia.
- Confidencialidade e Segurança: A ética médica exige que os dados do paciente sejam mantidos em sigilo, e a LGPD reforça isso ao exigir medidas técnicas e organizacionais, como criptografia, firewalls e controles de acesso, para evitar vazamentos.
- Responsabilidade Profissional: A LGPD introduz a figura do Encarregado (DPO, Data Protection Officer), que atua como ponto de contato entre a clínica, os pacientes e a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), promovendo uma gestão ética e responsável dos dados.
Para que tais requisitos se cumpram, torna-se necessária a implementação de políticas internas (como gestão de dados e cibersegurança e treinamento de equipe), auditorias internas e uso de tecnologia de ponta que garantam efetiva proteção, nos termos da LGPD.
Assim, nota-se que se faz essencial a confecção do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), somado à implementação de medidas de segurança, como sistemas criptografados, controle de acessos, etc. e treinamento de equipe. Porém, quando falamos em TCLE precisamos trazer o conhecimento da bioética e pensarmos no processo de consentimento livre e esclarecido, no qual o Termo é somente o resultado de um processo complexo.
A bioética, como ciência que se debruça sobre os dilemas éticos da vida e do viver – do início ao fim de vida – se encarrega do efetivo processo de consentimento livre e esclarecido, o qual demanda passos e estágios distintos, com clara comunicação entre os interlocutores, informações acessíveis e isentas de ruídos e formalidades técnicas, Somente a partir da utilização de mecanismos amplos e complexos, que garantam a verdadeira troca de comunicação ou seja, após concluído o processo de consentimento livre e esclarecido, é se passa à elaboração dos TCLE.
Ademais, quando observado o recorte das clínicas médicas reprodutivas, faz-se essencial se atentar às declarações bioéticas, as quais o Brasil é signatário, fazendo-se incluir suas disposições tanto em relação ao processo de consentimento livre e esclarecido, quanto à redação dos termos de consentimentos livre e esclarecido. No caso, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos, de 1997 (UNESCO), a Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, de 2003 (UNESCO) e a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, de 2004, (UNESCO) nos conduzem e nos dão substratos que merecem ser observados, que vão além das orientações da LGPD e Código de Ética Médica. Ou seja, o efetivo termo de consentimento livre e esclarecido carece de uma análise bioética, sendo, de preferência redigido por quem detenha o conhecimento da bioética e biodireito.
Afora isso, esclarece-se que não há legislação específica no Brasil sobre a reprodução medicamente assistida, sendo regulamentada pelas normas éticas e deontológicas do CFM. Atualmente, está em vigor a Resolução 2320/22 do CFM que disciplina as técnicas, sendo uma orientação às equipes e clínicas médicas. Assim, a utilização da Resolução para esclarecimentos jurídicos e soluções advindas de disputas de materiais genéticos é um subterfúgio para a ausência de lei específica no país.
Para fins de exemplificação, o atual Código Civil, apenas faz menção à reprodução humana assistida no art. 1597, incisos III ao V, fazendo referência à presunção de filiação. Todavia, tal situação está em vias de se alterar, haja vista que o relatório final do Anteprojeto da reforma do Código Civil faz referência expressa à filiação decorrente da reprodução assistida, nos art. 1629, dos incisos A ao V, disciplinando as disposições gerais, bem como situações como doação de gametas, cessão temporária de útero, reprodução assistida post mortem, e o consentimento informado – trazendo maior substrato para se lidar com as questões jurídicas advindos da filiação decorrente da reprodução humana assistida.
No ponto, cabe referir que é crescente o número de casos de disputas judiciais e situações jurídicas envolvendo reprodução humana assistida, o que demonstra a necessidade de orientações jurídicas claras durante o processo de consentimento livre e esclarecido, bem como na redação final dos TCLE. Tal afirmativa se mostra válida na medida em que, fazer constar o campo referente à manifestação de vontade em relação ao material genético excedente em caso de dissolução de união estável, divórcio e falecimento (de um ou de ambos os autores do projeto parental), não basta para garantir que os autores do projeto parental detém efetivo conhecimento em relação às consequencias jurídicas futuras e que implica maior insegurança em relação à manifestação de vontade e eventuais disputas judiciais futuras.
Ou seja, mostra-se necessário abordar as situações jurídicas no curso do processo de consentimento livre e esclarecido, somado à redação detalhada junto ao TCLE. Demonstrado que houve absoluta informação em relação aos aspectos de filiação e sucessório junto ao processo de consentimento e tais aspectos estão redigidos no termo, torna-se mais difícil sustentar a tese de que o TCLE é mero contrato de adesão e foi firmado pelo simples fato de que ser instrumento necessário para levar a diante a reprodução humana realizada – situação que vem sendo considerada junto aos processos judiciais.
A partir disto, mostra-se crucial compreender que para que haja o efetivo processo de consentimento livre e esclarecido, somado à redação detalhada do TCLE, faz-se necessário conter as exigências éticas do Código de Ética Médica, somado às disposições esculpidas na LGPD, às diretivas bioéticas e, no caso das clínicas reprodutivas, os aspectos jurídicos atinentes às questões de filiação, parentesco e sucessório.
Para tal, é fundamental uma consultoria e assessoria de profissional que detenha conhecimento nessas três áreas e, além disso, um efetivo treinamento da equipe clínica nesse sentido.
Laura Affonso da Costa Levy
Associada do IARGS, Doutoranda em Estudos Políticos e Humanitários UFP/PT; Mestre em Bioética UMSA/AR; especialista em Bioética PUC/RS; especialista em Direito de Família e Sucessões IDC; advogada; consultora em Bioética e Biodireito; professora universitária.