10/07/2025 07h00 - Atualizado 09/07/2025 20h42

Agronegócio sob Chuva e Sol: Revisão Contratual como Cláusula de Sobrevivência?

Por Terezinha
para IARGS

O agronegócio brasileiro é, simultaneamente, potência e vulnerabilidade. Desde o adágio atribuído a Pero Vaz de Caminha “em se plantando, tudo dá” firmou-se a vocação agropecuária do Brasil, hoje pilar da economia. O setor bate recordes anuais, respondendo por 23,2 % do PIB nacional (R$ 2,72 trilhões), com crescimento de 1,81 % em 2024. No mesmo ritmo, o país se consolidou como um dos maiores exportadores globais de commodities, alcançando US$ 164,4 bilhões em vendas externas e 48,8 % do total exportado, segundo o MAPA[1].

Segundo BTG Pactual[2] o Brasil lidera as exportações de soja (56 % do mercado global, US$ 53,9 bilhões) e sucroalcooleiras (12 %, US$ 19,7 bilhões); é maior produtor e exportador de café (≈1/3 da produção mundial, 7,5% e US$ 12,3 bilhões). Apesar de liderar na produção de laranja in natura (34 %), destaca-se no suco concentrado (FCOJ 66 Brix), com US$ 1,88 bilhões exportados, sendo 42,7 % para a Europa, segundo Reuters[3] e CEPEA/Esalq-USP[4].

O setor de proteína animal gerou US$ 26,2 bilhões (15,9 % das exportações), com o Brasil na liderança do frango (14 % da produção global, 5 milhões t), superando os EUA na carne bovina (23,5 % das exportações, com 2,5 milhões t) e ocupando o 4º lugar na carne suína (1,3 milhão t, US$ 3 bilhões, 12 %). Também se destaca na expansão das exportações de rendering, da reciclagem animal (óleos, farinhas e processados), algodão (12,4 milhões de fardos) e produtos florestais (celulose e madeira)3,4.

Todavia, as intempéries dos ciclos de chuva e sol marcam o tempo do campo, e o produtor rural enfrenta riscos que extrapolam a lógica econômica comum, daí o epíteto de “empreendimento a céu aberto”. Esse Duplo Risco da Agrariedade compreende: o risco agrobiológico, como destaca Rodolfo Carrera[5], pela vulnerabilidade a pragas e doenças que comprometem safra ou rebanho; e o risco edafoclimático[6], referido por Carrozza[7], ligado às condições de solo e clima.

Nesse ambiente incerto, a rigidez contratual pode ser fatal. A revisão judicial dos contratos, que antes era vista como exceção indesejada, vem assumindo papel cada vez mais central na manutenção da atividade agropecuária. Afinal, diante da imprevisibilidade natural e climática que caracteriza o setor, seria a revisão contratual, baseada na Teoria da Imprevisão, a nova cláusula de permanência produtiva?

A atividade agrária[8] envolve o que a doutrina agrarista chama de agrariedade5: dependência intrínseca de fatores edafoclimáticos, sazonais e biológicos, alheios à vontade do produtor e à previsibilidade contratual comum. Tal característica distingue o agro dos demais setores e justifica tratamento jurídico específico e protetivo. Não são riscos comuns de mercado, mas fenômenos extraordinários que comprometem a produção como secas, enchentes, geadas, pragas e doenças disseminadas por variáveis ambientais.

Eventos extremos tornaram-se mais frequentes e severos. A seca no Centro-Oeste (2020–2021), as enchentes no RS (2024) e os efeitos do El Niño mostram como a instabilidade climática compromete contratos agrários celebrados sob outras condições. Soma-se a isso a oscilação cambial e barreiras logísticas, ampliando a imprevisibilidade no setor e afetando custos, preços e prazos, que vão além de empreendimentos urbanos.

A revisão contratual não fere a autonomia da vontade, mas ajusta a obrigação à nova realidade. A agricultura, por seus ciclos longos, exige flexibilidade e não comporta rigidez. Preservar contratos com justiça é medida técnica e jurídica sólida para garantir produção, prosperidade e abastecimento. Nas palavras de Lutero Pereira: a alimentação é protodireito social[9], e produzir alimentos é uma das artes mais nobres dadas ao homem.

A revisão contratual é excepcional, prevista nos arts. 317 e 478 do Código Civil para fatos supervenientes, extraordinários, imprevisíveis e desequilibrantes. No meio rural, tais hipóteses ganham especial relevo, já que o risco da agrariedade, vinculado a fatores naturais e biológicos, deve ser distinguido da mera especulação econômica. A jurisprudência tem, em tese, restringido a revisão de contratos agrários, como arrendamentos e parcerias, sob argumento de que, em condições normais, o Duplo Risco da Agrariedade seria inerente à atividade e coberto pelo princípio do pacta sunt servanda.

A doutrina distingue a onerosidade excessiva (desvantagem sem culpa) da teoria da imprevisão (exige fato superveniente, extraordinário e imprevisível). Ambas se diferenciam do caso fortuito e da força maior, decorrentes de fenômeno natural e não de ato humano, que afetam o objeto da obrigação, não o equilíbrio contratual. Quando a base econômica do acordo é rompida por eventos externos, a revisão busca preservar — e não romper — o contrato, com fundamento na boa-fé e na função social[10]. Produtores rurais, especialmente os pequenos, firmam contratos plurianuais baseados em estabilidade mínima; diante de eventos climáticos extremos ou distorções de mercado, a revisão evita inadimplência, recuperações judiciais e litígios.

Insistir num pacta sunt servanda inflexível, de olhos vendados e ouvidos moucos às mudanças climáticas, cada vez mais frequentes, cujo epicentro latino-americano é o RS, ignora a realidade do campo e gera insegurança, judicialização, evasão produtiva e êxodo rural. A revisão, se bem fundamentada, atua como instrumento de equilíbrio e continuidade, verdadeiro “oxigênio contratual”, cuja previsão em cláusulas específicas pode inclusive mitigar conflitos futuros.

A jurisprudência do STJ não tem súmula específica sobre a inaplicabilidade da teoria da imprevisão a contratos agrários, admitindo sua aplicação teórica quando estritamente cumpridos os requisitos legais. O STF também não firmou entendimento contrário, ao reconhecer a função social da terra e considerar as questões contratuais agrárias como matéria infraconstitucional, cabendo ao STJ e à justiça comum competência para analisar a revisão contratual. Assim, não há impedimento legal ou constitucional para aplicar a teoria da imprevisão aos contratos agrários, tema ainda aberto à análise casuística.

Concluindo, o agronegócio enfrenta realidades cíclicas e desiguais, faça chuva ou faça sol. Para evitar que a produção sucumba às intempéries, os contratos devem prever margens de flexibilidade. A revisão judicial, quando justificada, é possível e necessária, não como privilégio, mas como justiça contratual, assente na função social. Encarar a revisão como “cláusula de sobrevivência” reconhece a especificidade rural e a necessidade de garantir a continuidade do setor agropecuário. No Direito Contratual aplicado ao agronegócio, adaptar-se é exigência para a sobrevivência do produtor rural, do mercado e da segurança alimentar.

[1] Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA). “Brazilian agribusiness exports surpass USD 153 billion in 2024” (Dez 2024).

[2] BTG Pactual. “Brazil dominates global exports of seven food products” (Mar 2024).

[3] Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA) / Cepea–Esalq/USP. Sumário Executivo PIB do Agronegócio – 4º trimestre de 2024 (8 abr 2025).

[4] Reuters – “Brazil orange juice exports volume falls 20% from July to December” (15 jan 2025); e “Brazil’s orange output to hit over 30‑year low on disease, weather” (10 mai 2024).

[5] CARRERA, R.R. Teoria agrobiológica delDerechoAgrario, Buenos Aires: Depalma. 1978.

[6] SELISTRE, A.V. Para descomplicar as cadeias produtivas e sistemas agroindustriais. In: In: Parra, R.A. Direito aplicado ao Agronegócio 3ª Edição Revista, atualizada e ampliada. Londrina: Editora Thoth.2022.

[7] CARROZZA, A. Lezioni sul dirittoagrario. Elementidi teoria generale. 2. ed. Milano: Giuffrè. 1978.

[8] SODERO, F.P. Rivista di Diritto Agrário. Milão, Casa EditriceDott. A. Giuffrè. 1979.

[9] PEREIRA, Lutero de Paiva. Alimentação: o protodireito social. Curitiba: Íthala, 2022.

[10] GONÇALVES, Albenir Itaboraí Querubini; CERESÉR, Cassiano Portella. Função Ambiental da Propriedade Rural e dos Contratos Agrários. São Paulo: Liv. e Ed. Universitária de Direito, 2013.

Alexandre Valente Selistre

Diretor Adjunto em Direito Civil no IARGS, advogado agrarista, professor e pecuarista. Mestre e Doutor em Agronegócios UFRGS

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