11/05/2021 08h27 - Atualizado 31/01/2024 10h21

Artigo- Inteligência Artificial e Proteção de Dados

Por Terezinha
para IARGS
Artigo do advogado e professor Cristiano Colombo[1], associado do IARGS
Tema: Inteligência Artificial e Proteção de Dados
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A Inteligência Artificial (IA) que, por muito tempo, estava associada a obras de ficção científica[2] e ligada a cenários futuristas, passa a ser pauta de debate do quotidiano da comunidade jurídica. Cidadãos, destinatários dos serviços jurídicos, encantados ou premidos pela conectividade, vivem em uma onlife experience.[3] Significa dizer que a existência humana vibra entre o físico e o virtual, sendo difícil às pessoas compreenderem as fronteiras entre o online e offline, tendo como resultante uma simultânea e totalizante experiência onlife. Tal situação se traduz, por exemplo, na aplicação da IA na tomada de decisões por algoritmos[4], como vem ocorrendo em seleções de emprego, análises de empréstimo, contratação de planos de saúde, predição em matéria de crimes, inclusive, com aplicação, nos Estados Unidos, pelos juízes, na dosimetria de penas através do COMPAS (Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions)[5]. São as denominadas decisões automatizadas, definidas como aquelas aplicadas por meios tecnológicos, “quando o processo decisório não conta com a participação de um ser humano”[6], que acabam por afetar significativamente a vida das pessoas. A partir dos exemplos colacionados, reflexões sobre a utilização da IA se estendem pelos mais diversos campos de aplicação da Ciência Jurídica, dialogando com o Direito Civil, do Consumidor, Penal, do Trabalho, da Proteção de Dados, entre outros.
Demonstrada a sua aplicação “hic et nunc”, ou seja, não em um futuro distante, mas no “aqui e agora”, importante refletir acerca das características da Inteligência Artificial, quais sejam: a capacidade de exploração dos dados pessoais, para incrementar o seu funcionamento e adestramento; a possibilidade de rastreamento e identificação das pessoas, valendo-se de geolocalização; aplicação de ferramentas de reconhecimento facial e vocal; a possibilidade de predição, no sentido projetar os próximos passos de alguém, como, por exemplo, mapear os hábitos de consumo para prever as próximas aquisições; e, por último, a formação de perfis comportamentais, ou, profiling, valendo-se da construção de um modelo reputacional, a partir de comportamentos anteriores das pessoas, a ranqueá-las, com números e estrelas.[7] Nesse sentido, a IA alimenta-se de dados pessoais, na medida em que coleta nome, idade, geolocalização, gostos, hábitos, horários em que se desenvolvem determinados comportamentos, voz, ângulos faciais, entre outros, armazenando e formando bancos de dados, que podem ser utilizados pelos grandes players para conquista e expansão de mercado. Entrelaçam-se, portanto, as temáticas da IA e da Proteção de Dados.
Ressalte-se que a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), sob o nº 13.709 de 2018, em seu artigo 5º, conceituou dado pessoal como “informação relacionada a pessoa natural identificada ou identificável”. Enfim, dado é um fato, como o nome ou uma fotografia do rosto que identifica diretamente uma pessoa, ou, ainda, um conjunto de características, que possam vir a serem combinadas, abrindo a possibilidade de ser identificável, como localização, horário, objetos ligados a alguém. Dessa forma, a utilização de dados pessoais deve observar a linha principiológica trazida pela LGPD. Ressalte-se que “o princípio da boa-fé ponteia o artigo 6º, topologicamente, figurando em seu caput, o que na melhor técnica hermenêutica, indica primazia”, a consubstanciar uma Eticidade Algorítmica[8]. Portanto, devem os dados pessoais entregues pelos utilizadores a um dos provedores de aplicação serem tratados em harmonia às justas expectativas dos envolvidos. 
De igual forma, o mesmo dispositivo elenca outros princípios, entre eles: da finalidade, quando os prestadores não podem se afastar do motivo pelo qual o dado foi coletado; da necessidade, recolher o mínimo, sem excessos, evitando input de dados que sequer serão úteis; da não discriminação, que veda a aplicação de critérios diferenciadores na prestação de serviços, sem qualquer fundamentação, como questões étnicas, religiosas ou partidárias, inclusive, de localização, como o geopricing (preços fixados de acordo com o lugar em que a pessoa mora, levando em conta se o bairro é mais valorizado economicamente ou não) e o geoblocking (bloqueio de serviço para determinada região). A seu turno, a Inteligência Artificial não conta com uma Lei específica, em que pesem já existam iniciativas, como o PL 21 de 2020[9], que literalmente dispõe sobre o princípio da Centralidade no Ser Humano, que eleva a dignidade da pessoa humana, a privacidade, a proteção de dados e os direitos trabalhistas.
Por derradeiro, cabe a Ciência Jurídica voltar-se à construção de soluções, orquestradas com outros campos do saber, que reflitam os limites almejados pela Sociedade, a oferecer uma Inteligência Artificial “antropocêntrica e antropogênica” [10], na medida em que tenha o ser humano como centro, tendo supervisão e controle pela humanidade. Em um sentido prático, que a Inteligência Artificial não venha a prejudicar o ser humano: que não lhe substitua, mas que tenha um sentido de complementariedade, para que as pessoas tenham mais tempo para o desenvolvimento de tarefas criativas; que não imite falsamente o ser humano[11], sendo possível identificar quando se está interagindo com um robô, diversamente do contato humano. E, no diálogo entre os dados pessoais e a Inteligência Artificial, sejam implementadas práticas que afastem o escrutínio da vida privada das pessoas, observando os desenvolvedores da IA, tanto na alimentação (input) e na medida em que selecionam e aplicam suas instruções algorítmicas, a observância dos princípios da finalidade, a necessidade e não discriminação, para a concretização do Direito Fundamental à Proteção de Dados Pessoais.

[1] Pós-Doutor em Direito, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Doutor e Mestre em Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Permanente do Mestrado Profissional em Direito da Empresa e dos Negócios da UNISINOS; Professor de graduação em Direito e Relações Internacionais da UNISINOS; Professor de Graduação em Direito das Faculdades Integradas São Judas Tadeu; e-mail: cristianocolombo@unisinos.br.

[2] ASIMOV, Isaac. Eu robô. Tradução de Aline Sotoria Pereira. São Paulo: Editora Aleph, 2017, posição 2929-3397.

[3] FLORIDI, Luciano. The 4th Revolution: how the infosphere is reshaping human reality. Oxford: Oxford University Press, 2014, p. 43. Termo desenvolvido por Luciano Floridi a contextualizar a dificuldade ao ser humano de perceber a separação entre o físico e o virtual.

[4]COLOMBO, Cristiano; FACCHINI NETO, Eugênio. Decisões automatizadas em matéria de perfis e riscos algorítmicos: diálogos entre Brasil e Europa acerca dos direitos das vítimas de dano estético digital. In: MARTINS, Guilherme Magalhães; ROSENVALD, Nelson (coord). Responsabilidade civil e novas tecnologias. Indaiatuba: Foco, 2020.

[5] DUARTE, Fernando. Nove algoritmos que podem estar tomando decisões sobre sua vida – sem você saber. Disponível em: Como Algoritmos estão tomando decisões por você . Acesso em: dez. 2019.

[6] ORIENTAÇÕES sobre as decisões individuais automatizadas e a definição de perfis para efeitos do Regulamento (UE) 2016/679. 2018. Disponível em: https://ec.europa.eu/newsroom/article29/item-detail.cfm?item_id=612053>. Acesso em: 2019.

[7] MAGLIO, Marco et al. Manuale di diritto alla protezione dei dati personali. Santarcangelo di Romagna: Maggioli, 2019, p. 871-873.

[8] COLOMBO, Cristiano; GOULART, Guilherme Damasio. Ética Algorítmica e Proteção de Dados Pessoais Sensíveis: Classificação de Dados de Geolocalização em Aplicativos de Combate à Pandemia e Hipóteses de Tratamento. In: FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Direito Digital e Inteligência Artificial: Diálogos entre Brasil e Europa. Indaiatuba: Foco, 2021.

[9] BRASIL. Projeto de Lei 21 de 2020. Disponível em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2236340. Acesso em 10 maio 2021.

[10] UNIÃO EUROPEIA. Regime relativo aos aspetos éticos da inteligência artificial, da robótica e das tecnologias conexas. Disponível em: https://www.europarl.europa.eu/doceo/document/TA-9-2020-0275_PT.html Acesso em: 13 nov. 2020.

[11]PASQUALE, Frank. News Law of Robotics: Defending human expertise in the Age of Ai. Londres: Harvard University Press, 2020.

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