13/05/2025 07h00 - Atualizado 12/05/2025 20h04

Os números da justiça e o “eficientismo”: desafios para atores jurídicos

Por Terezinha
para IARGS

Torturem os números que eles confessam. Essa frase que nos remete para a obra do professor português Pedro Nogueira Ramos[i], tantas vezes repetida com ironia nos meios estatísticos e administrativos, revela mais do que um cinismo técnico: ela denuncia uma mutação paradigmática no modo de governar. Os números, quando tratados sob a pressão da eficiência, da produtividade e do desempenho, deixam de ser instrumentos de compreensão da realidade para tornarem-se operadores de conformidade. Confessam aquilo que deles se espera, moldando a realidade institucional a partir de critérios técnicos, supostamente neutros, mas politicamente orientados. É nesse contexto que o sistema de justiça se vê cada vez mais capturado pelo “novo espírito do capitalismo”, que transforma juízes em gestores, decisões em produtos e a jurisdição em prestação de serviço.

A contemporaneidade assiste a uma profunda transformação nos paradigmas que orientam a administração pública e, de modo particular, o sistema de justiça. Uma crescente influência da lógica neoliberal tem introduzido mecanismos de gestão inspirados no setor privado, nos quais a mensuração de resultados e a busca incessante por eficiência se tornam pedras angulares. Este fenômeno, que pode ser denominado “eficientismo”, manifesta-se através da implementação de metas quantitativas e indicadores de desempenho, configurando uma verdadeira “governança por números”. Como destaca Pierre Dardot em seu texto “Julgamento judicial posto à prova da governança pelos números”, esta governança não é simplesmente uma forma de governo entre outras, mas representa uma ruptura qualitativa baseada em uma qualificação estatística fundamentalmente diferente da qualificação jurídica tradicional.[ii] Tal abordagem, embora possa apresentar benefícios em termos de celeridade e otimização de recursos, suscita preocupações significativas, especialmente no que tange à potencial primazia da quantidade sobre a qualidade da prestação jurisdicional.

Assim, com a disseminação da lógica neoliberal, consolida-se uma “nova razão do mundo”, conforme analisam Pierre Dardot e Christian Laval[iii]. Uma racionalidade que não se limita a promover a desregulação dos mercados, mas instaura uma outra forma de “governamentalidade” que se estende a todas as dimensões da vida social, incluindo o próprio Estado. Sob essa ótica, o Estado passa a ser concebido e administrado como uma empresa, onde a eficiência, a competitividade e a performance, mensuradas por indicadores numéricos, tornam-se os principais vetores de sua ação. Michel Foucault, em seus estudos sobre a “governamentalidade”, já apontava para essa dimensão prescritiva do neoliberalismo, que não apenas destrói regras, mas impõe novas normas de conduta e modelos de subjetivação pautados pela lógica empresarial.[iv] No âmbito do sistema de justiça, essa transposição de modelos gerenciais se manifesta pela crescente adoção de mecanismos de controle e avaliação baseados em metas quantitativas.

A eficiência deixa de ser um meio para alcançar a justiça e se converte, progressivamente, em um metavalor que orienta toda a atividade jurisdicional. Assim, o discurso da modernização e da necessidade de respostas rápidas à sociedade serve de justificativa para a implementação de reformas que priorizam a celeridade processual e a produtividade numérica, muitas vezes em detrimento da dimensão reflexiva inerente ao ato de julgar.

A materialização do “eficientismo” no sistema de justiça ocorre por meio da proliferação de metas, indicadores de desempenho e instrumentos de gestão que visam quantificar e padronizar a atividade jurisdicional. Iniciativas como o “Selo Justiça em Números” exemplificam essa tendência, ao premiar unidades judiciárias com base em critérios predominantemente quantitativos. Benoit Frydman adverte para a ascensão de “objetos normativos não identificados” – normas técnicas, resoluções administrativas, planos de gestão – que, embora não se enquadrem nas categorias jurídicas tradicionais, passam a exercer uma força normativa considerável, pilotando o próprio direito.[v] Uma ênfase na quantidade, que carrega consigo o risco intrínseco de comprometer a qualidade da prestação jurisdicional.

Dardot, recorrendo a Kant, Ricoeur e Gadamer, adverte que o julgamento judicial deve conter uma dimensão reflexiva, onde a singularidade do caso contribui para determinar, completar e até mesmo modificar a regra.[vi] A pressão por atingir metas numéricas pode levar magistrados e servidores a priorizarem a celeridade em detrimento dessa dimensão reflexiva essencial, comprometendo a análise aprofundada dos casos, a adequada valoração das provas e a construção de fundamentações jurídicas sólidas.

A consolidação da governança por números e do “eficientismo” no sistema de justiça impõe uma série de desafios práticos significativos para advogados, magistrados, membros do Ministério Público e demais profissionais do direito. A pressão por produtividade numérica, traduzida em metas de sentenças proferidas, audiências realizadas ou processos arquivados, pode induzir a uma atuação mais superficial, onde a complexidade dos casos e a profundidade da análise jurídica são sacrificadas em nome da celeridade estatística.

Dardot acrescenta o alerta para um fenômeno ainda mais preocupante: o avanço da justiça algorítmica ou “preditiva”, onde algoritmos processam centenas de decisões judiciais para deduzir a decisão que “deveria logicamente ser proferida” em casos semelhantes. Essa tendência favorece as probabilidades estatísticas em detrimento da especificidade de cada caso e da individualização das decisões, além de introduzir múltiplos vieses através dos programadores dos algoritmos.[vii]

Deste modo, para os magistrados, surge o dilema entre a necessidade de cumprir as metas institucionais e o dever de preservar a dimensão reflexiva do julgamento, essencial para decisões justas e bem fundamentadas. Advogados, por sua vez, podem encontrar dificuldades em garantir que os direitos de seus clientes sejam plenamente apreciados em um ambiente focado na produção em massa e cada vez mais influenciado por previsões algorítmicas. A argumentação detalhada, a produção probatória exaustiva e a interposição de recursos, elementos essenciais ao contraditório e à ampla defesa, podem ser vistas como entraves à celeridade e, consequentemente, mal-recebidas em um sistema orientado por metas quantitativas. Outro desafio reside na interpretação e aplicação dos já mencionados “objetos normativos não identificados”. Os profissionais do direito precisam desenvolver a capacidade de compreender e lidar criticamente com resoluções, portarias e planos de gestão que, embora não emanem do processo legislativo tradicional, impactam diretamente a prática forense e a condução dos processos, dando uma nova configuração para o cenário das fontes do direito.

A transposição da lógica neoliberal e de seus mecanismos gerenciais para o sistema de justiça, materializada na governança por números e no “eficientismo”, representa uma transformação complexa e multifacetada que desafia os fundamentos da atividade jurisdicional. Se, por um lado, a busca por maior celeridade e otimização de recursos é uma demanda social legítima, por outro, a ênfase excessiva em metas quantitativas e indicadores de desempenho pode acarretar sérios prejuízos à qualidade da prestação jurisdicional e à própria concepção de justiça.

Portanto, a governança pelos números, ao pretender substituir o julgamento pela contagem, ameaça a própria essência do ato de julgar, que é inerentemente reflexivo e interpretativo. Os desafios impostos aos atores jurídicos são inúmeros, exigindo não apenas adaptação, mas, sobretudo, uma postura vigilante e crítica. É imperativo que advogados, magistrados, promotores e demais profissionais do direito se engajem em um debate profundo sobre os rumos do sistema de justiça, questionando os limites da quantificação e defendendo a primazia da justiça material sobre a eficiência meramente formal.

[i] RAMOS, Pedro Nogueira. Torturem os Números que Eles Confessam: Sobre o mau uso e abuso das Estatísticas em Portugal, e não só. Coimbra: Almedina, 2013.

[ii] DARDOT, Pierre. Julgamento judicial posto à prova da governança pelos números. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202532657, 2025.

[iii] DARDOT, Pierre. LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal . São Paulo: Boitempo. 2016.

[iv] A categorias tratadas nas obras: FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado no Collège de France (1977- 1978) . Editora Martins Fontes. São Paulo. 2008. FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica: curso dado no Collège de France (1978-1979). São Paulo: Martins Fontes, 2008.

[v] . FRYDMAN, Benoit..Le management comme alternative à la procédure Disponível em: https://www.google.com.br/#q=Le+management+comme+alternative+%C3%A0+la+proc%C3%A9dure. Acesso em 28 de setembro de 2017.

[vi] DARDOT, Pierre. Julgamento judicial posto à prova da governança pelos números. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202532657, 2025

[vii] DARDOT, Pierre. Julgamento judicial posto à prova da governança pelos números. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 37, e202532657, 2025

Marcelo Oliveira de Moura
Associado do IARGS. Advogado. Mestre e Doutor em Direito (Unisinos), Estágio de Pós-Doutorado na Faculdade de Economia da Universidade de Roma La Sapienza

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