06/09/2023 08h53 - Atualizado 06/09/2023 08h53

Artigo- Direito e Literatura

Por Terezinha
para IARGS

Artigo do membro Superior do IARGS, Dr. Norberto da Costa Caruso Mac Donald
Tema: Direito e Literatura
________________________________________________________________________________
 

“A arte, como o direito, serve para ordenar o mundo. O direito, como a arte, estende uma ponte desde o passado.” (Francesco Carnelutti, Arte del Derecho)

Entre as atividades culturais do IARGS, vem se destacando a desenvolvida pelo Núcleo de Debates entre Direito e Literatura, coordenado pelo Dr. César Vergara de Almeida Martins Costa, autor de importantes estudos relativos à matéria. Como é usual, as exposições acerca do tema versam principalmente sobre a apreciação de determinadas obras literárias por sua relevância e adequação aos debates. Ocorreu-me, então, apresentar algumas anotações pertinentes à interação direito/literatura em suas características gerais, valendo-me de autores que também tiveram essa preocupação.
 
A respeito da evolução histórica que resultou na renovação do estudo das relações direito/literatura, Daniela Carpi (1), professora da Universidade de Verona, aponta que, “depois do fim do enciclopedismo e o nascimento das especializações, que ordenaram as várias disciplinas em rígidas separações, os estudos crítico-jurídicos se reaproximaram novamente dos literários e jurídicos sob a égide de uma ampla etiqueta de ‘estudos humanísticos’. O recente crescimento dos estudos críticos a respeito da relação entre direito e literatura é o reconhecimento da reaproximação entre os dois campos culturais: deles se estudam não só as afinidades, as recíprocas interferências e influências, mas também a comum utilidade científica e didática”.
 
Segundo Carla Faralli (2), da Universidade de Bolonha, “ é costume periodizar os estudos de direito e literatura em dois momentos: o primeiro do início do Novecentos aos anos Cinquenta; o segundo dos anos Setenta aos nossos dias. O que distingue as duas fases é o fato de que antes dos anos Setenta não se desenvolve sistematicamente uma reflexão sobre o método do relacionamento jus-literário, ainda que a maior parte dos temas e dos problemas manifeste-se desde o fim dos anos Vinte. Somente do fim dos anos Setenta em diante, a análise das obras literárias que se referem ao direito é acompanhada de modo sempre mais aplicado e inovador também do estudo da potencialidade heurística e formativa dessa orientação de pesquisa “.
 
O método utilizado por Francesco Galgano (3), para apreciação do tema, mostra-se abrangente e elucidativo ao contemplar destacadamente os diversos setores em que a influência recíproca entre direito e literatura se revela.
 
Diz o jurista: “Um discurso sobre a relação entre o direito e a literatura deve proceder por graus, a começar pelo DIREITO NA LITERATURA, ou seja, fazendo referência às categorias jurídicas que comparecem nas obras não jurídicas, tais como poéticas, narrativas, filosóficas e assim por diante.” Cita, como primeiro exemplo, a Ilíada, em que Homero descreve o processo arcaico. A seguir, refere O Processo, de Franz Kafka, e comenta: “uma instituição criada pelo direito como garantia da liberdade do indivíduo, se traduz numa máquina que o aniquila“. Aduz que o contrato, outro conceito fundamental do direito, está no centro do pensamento dos filósofos, de Epicuro aos modernos.
 
Paradigmático da contribuição da literatura para o direito mostra-se o legado de William Shakespeare, criteriosamente analisado por José Roberto de Castro Neves (4) em sua obra Medida por Medida – O Direito em Shakespeare, em cujo prefácio Judith Martins-Costa observa que a pergunta que o autor efetivamente respondeu foi: “como pode a Literatura (a obra de Shakespeare, em especial) ajudar a todos nós, juristas ou não, a melhor compreender o mundo, o Direito que está no mundo e nós mesmos?”
 
Entre as obras de Shakespeare, tem se destacado, nos meios jurídicos, O Mercador de Veneza, que motivou até Rudolf von Jhering (5) a se manifestar em mais de uma passagem de sua A Luta pelo Direito, seja para sustentar que Shylock se viu defraudado em seu direito, seja para colocar na boca do personagem a frase: “Eu invoco a lei” . Prossegue Jhering: “Nestas quatro palavras o poeta indicou a relação do direito subjetivo com o direito objetivo e a importância da luta pelo direito, mais justamente do que poderia fazê-lo um filósofo do direito.”
 
Outras obras clássicas têm sido citadas por juristas em suas manifestações. Assim, Tullio Ascarelli (6) em seu discurso por ocasião da entrega do título doutor honoris causa na UFRGS, ao discorrer sobre a exigência da certeza jurídica, lembrou a advertência contida no diálogo platônico “em que Sócrates recordava a Criton, que o incitava a fugir para subtrair-se à injusta condenação, que as leis devem, não obstante, ser respeitadas e que, tendo nascido e vivido em Atenas, também tinha contraído o dever de observar suas leis.” Continua Ascarelli: “no diálogo entre Antígona e Creonte, onde este se faz intérprete da exigência de obediência ao direito positivo regularmente formulado, contra a lei moral reivindicada por Antígona, o jurista acaba, embora a contragosto, a se fazer intérprete e aplicador da lei de Creonte.” No mesmo livro em que foi publicado o discurso sob o título Concetti Giuridici e Interpretazione, encontra-se interessante ensaio denominado A Mensagem Jurídica de Dante.
 
Extrai-se, desses exemplos, a consistente presença do direito na literatura.
 
Seguindo o método de Galgano, passa-se à LITERATURA NO DIREITO. Galgano indaga: “o texto de direito é literatura?” E responde: “pode-se objetar, somente literatura técnica, como a literatura médica, da engenharia e assim por diante. É literatura destinada a especialistas, comunicação interna aos cultores da disciplina. Exige-se, isto sim, extrema precisão conceitual, clareza expositiva, mas não valor literário.” O próprio autor coloca, em seguida, uma réplica: “os conceitos do direito não são conceitos descritivos, mas conceitos persuasivos; não devem somente expor, devem sobretudo convencer. Para dizê-lo em uma palavra: não somos, nós juristas, somente ‘netos’ de Ulpiano, mas também ‘netos’ de Cícero, que permaneceu como sumo modelo de estilo literário.”
 
A partir dessas colocações, impõem-se, neste passo, algumas observações. Desde logo, ressalta a clareza como qualidade primordial do texto jurídico. Isso, porém, não afasta a utilização da terminologia técnica da ciência do direito. Se a manifestação de um advogado é dirigida a um magistrado, não haverá preocupação em elucidar a referida terminologia. Mas, se se trata de uma publicação dirigida ao público em geral, ou de uma explicação a um leigo, a clareza ficará comprometida caso os termos técnicos não fiquem esclarecidos.
 
Outrossim, o emprego de uma linguagem rebuscada ou empolada, pretensamente erudita, não raro utilizada para encobrir deficiências na compreensão do que está sendo exposto, é altamente comprometedora da clareza de uma comunicação escrita ou oral. Esta, com imperfeições como as apontadas, propiciará a sua qualificação depreciativa de “juridiquês”, termo criado justamente para designar uma manifestação jurídica obscura, ainda que rebuscada.
 
As observações acima encontram apoio em autores clássicos do direito e da literatura. Exemplificando:
 
Manoel Inácio Carvalho de Mendonça(7): “A magnitude do assunto, pois, aconselhou-nos a recalcar a cogitação da forma para o segundo plano. É que, aqui, como em tudo mais, como bem dizia o autor de Faust, a razão e o bom senso não têm necessidade de tanta arte para se exibirem. Desde que se tenha alguma coisa séria para se dizer, que necessidade há de andar à cata de palavras? (…) Não queremos com isso dizer que tivéssemos abandonado ou sacrificado de qualquer forma a técnica. Ao contrário, seguimo-la rigorosamente. As verba juris, a que os romanos consagraram tanto carinho, têm sua lógica, seu histórico e filiação: elas guiam, favorecem e não raro inspiram o próprio raciocínio jurídico. Seu sacrifício seria imperdoável.”
 
Piero Calamandrei: “Útil é o advogado que fala apenas o estritamente necessário, que escreve claro e concisamente, que não estorva o pretório com a grandeza de sua personalidade, que não aborrece aos juízes com a sua prolixidade nem os põe desconfiados com a suas subtilezas – isto é exatamente o contrário do que certo público entende por grande advogado.” (apud José Roberto de Castro Neves)
 
“A passagem faz lembrar um ensinamento do filósofo Sêneca, um dos preferidos de Shakespeare: ‘Quando vires alguém com estilo rebuscado e cheio de adornos podes ter certeza que sua alma se ocupa igualmente de bagatelas ‘ “ (apud José Roberto de Castro Neves)
 
George Orwell (8): “O próprio empolamento do estilo é uma espécie de eufemismo. Uma cascata de termos alatinados tomba sobre os fatos como flocos de neve, confundindo os contornos e obscurecendo os pormenores. O grande inimigo da linguagem clara é a falta de sinceridade. Quando se abre um hiato entre os objetivos reais e os declarados, quase por instinto a pessoa se volta para as palavras compridas e as expressões gastas, como um polvo espirrando tinta.”
 
Nos últimos itens de sua análise, Galgano aborda a RELAÇÃO ENTRE A CULTURA JURÍDICA E AS OUTRAS CULTURAS (“o direito pode ser poesia, como em Homero, como pode servir à filosofia, como para Locke…”) e discorre sobre o JURISTA QUE É LITERATO ALÉM DO DIREITO.
 
Para concluir, recorro mais uma vez a Carla Faralli (2), que assim encerrou seu artigo: “Desejaria concluir com um presságio: bem-vindos os cursos de direito e literatura nas (…) faculdades de direito, mas que não seja esquecido que mais do que uma disciplina, direito e literatura é uma abordagem de pesquisa, um método didático útil em diversos campos de disciplinas, empregado com finalidades diversas de acordo com as disciplinas, mas com um mínimo denominador comum: a concepção do direito não como um universo à parte. mas como fenômeno histórico-cultural para estudo do qual é essencial uma formação humanística, cujo componente essencial é aquele que Martha Nussbaum define como ‘imaginação criativa’, vale dizer, a ‘capacidade de pensar’ nas condições de outra pessoa, de ser um leitor inteligente da sua história, de compreender-lhe as emoções, as expectativas, os desejos. A pesquisa de tal empatia é parte essencial das melhores concepções de educação para a democracia, seja nos países ocidentais, seja nos orientais.”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
(1) Daniela Carpi – “Law ands…” – Contratto e Impresa 4-5/2013 – Ed. Wolters Kluwe Italia Srl, Assago (MI)
(2) Carla Faralli – Diritto e Litteratura nella Formazione del Giurista – Contratto e Impresa 2/2014 – Ed. Wolters Kluwe Italia Srl, Assago (MI)
(3) Francesco Galgano – Il Giurista Scrittore – Contratto e Impresa 1/2009 – Ed. Wolters Kluwe Italia Srl, Assago (MI)
(4) José Roberto de Castro Neves – Medida por Medida – O Direito em Shakespeare – GZ Editora, Rio de Janeiro, 2013
(5) Rudolf von Jhering – A Luta pelo Direito – Ed. Organização Simões, Rio de janeiro, 1953
(6) Tullio Ascarelli – Ensaios e Pareceres – Ed. Saraiva, São Paulo, 1952
(7) Manoel Inácio Carvalho de Mendonça – Doutrina e Prática das Obrigações – tomo I – Ed. Revista Forense, Rio de Janeiro, 1956
(8) George Orwell – Sobre a Verdade – Companhia das Letras, São Paulo, 2020

Comente, critique, elogie, abaixo nos cometários

  1 Comentário   Comentar

  • César Vergara de Almeida Martins Costa 8 meses     Responder

    Excelente artigo, com abordagem séria e profunda que o tema merece. Agradeço ao Dr. Norberto a gentil menção feita ao meu nome.

Faça seu comentário

Você pode usar essas tags HTML:
<a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>